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POEMAS

(Inédito):

 

DA PALAVRA

A palavra é cara de si mesma
é falta de si mesma
       chama.
A palavra é fome de si mesma
é olho de si mesma
       é asa.
“Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas frases tão fatigadas.”
       A palavra
é coisa é outra é nada.
A palavra pedra
é larva.

 

Do livro Porcelana invisível (Cosac & Naif, 2015):


FENDA


Não repito
os mesmos
nítidos
idos gestos

Entre lábios
cresce
orvalho
o novo travo


Não sai o som
da voz
na manhã seguinte
com igual exatidão:

mudei
de mim?

Entre ontem
e amanhã
a minha face
tem o rosto

— de quem?


AFETO PARA VIOLONCELO


Amantes afinados e tímidos
os ombros baixam descobertos
sobre o instrumento hirto

os seios ainda mais próximos
sentem as notas musicais
segunda pele do corpo

as cordas seduzidas em arco
multiplicam fitas sonoras
tocadas em gesto amoroso.

E o Concerto de Orquestra
ganha ares
de Eros translúcido.


CANTIGA D’AMIGA

Ah, tua chegada ao meu corpo — os dedos
são remos aéreos em bordo cego.
Roçam-me o ventre num brindar de aedo
e breve me vencem os teus chamegos.

De que me vale dizer ao desejo:
não!? Se a própria mão escreve que sim
e na pele recebo o teu cortejo
sinto-me uma cortesã carmesim.

Tuas unhas. Louca. Quero ser loba.
Inteiro bardo no centro das curvas
ocupa-me a lua no vão das pernas.
Quero-te em mim erguido em asas:

voooooooooa!

E que ao venceres a distância pouca
quero ser loba. Tuas unhas. Louca.


MEDITAÇÃO


Começa por esvaziar a cabeça
esquece as ruas da cidade
a monotonia das horas

continua por fechar os olhos
aceita o manto negro
em convite fundo

doce mar noturno e sereno
onde se abre a cunha
de um só diamante

resiste a todo escuro
o ponto mínimo
do interno ouro

alfinete ex-
-tremo
de luz

no poema que se apaga.

CAPELA DE OSSOS


Centenas de caveiras cravejadas
no interior da capela de Évora
observam o andar do meu corpo
e a face encarnada de espanto.

Não sei o que pensam de mim
aqueles rostos secos sem face
fixos na imortal penumbra:
deixaram de ser humanos?

Sugerem uma pontada de riso
de quem vai direto ao ponto:
– A tua carne vive prazo de gozo
logo os teus ossos serão nossos.

Ora, como não temer as cabeças
de homens e mulheres difusos
(esqueletos sem direito ao nome)
assim feito ocos de si mesmos?


Com que intimidade perturbam
a passagem do mortal visitante
aquelas silhuetas imobilizadas
sem voz e sem fronte alguma:

– Só os crânios vazios nos olham.

FEBRE EGÍPCIA


Estou desarrumado por dentro
falta-me o prumo e o centro
só confusão trago nas orelhas.

Segui navios rio acima
emoções tiradas da carteira
figura de uma cidade decaída.

Não tenho idade certa nem sei
a casa que oferece abrigo
aos sonhos dos meus olhos

por desejar o que está além
do grito silenciado e oculto
um calor sobe no corpo.

Meu nome não me serve mais
a carne tornou-se inabitável:
a febre egípcia domina o quarto.

 

MALDIÇÃO DO TIETÊ

Já fostes um rio de serpente líquida
rasgo na terra protegido em sombra
reino de tantos rumos e destinos
de viajantes que seguiam as estrelas

fostes um rio de sonhos e de poemas
tentativas de adornar São Paulo
com o cordão lírico das tuas águas.
Mas os navios partiram depois...

Ainda eras um rio. E saciavas a sede
das mitologias tupi em volta de ti
enquanto os animais das margens
espreguiçavam debaixo do sol.

Já fostes. Mas agora nem um pôster
sobra daquele mundo natural
quando ainda eram possíveis
cardumes nas águas do Tietê.

Não és mais digno do rio passado
pois em teu leito sujo corre diário
o escárnio da indiferente cidade.

E os versos perderam o sentido.

ODE MATINAL


Como as mãos das gentes
as manhãs se parecem
as manhãs se repetem
opala
na ponta dos telhados
nuas.

Saem os dedos rápidos
no alto dos edifícios
de trás das árvores
em velocidade
crua.

Manhãs: aceno claro
acordam por estalidos
espuma no rosto
as manhãs vestem
as manhãs crescem

carrossel nos ares.

Manhã presente
entre marquises
recortada

fere a retina
da rotina
– agora.

TRIBUTO A KEITH JARRETT


Músico
das lições aéreas

paisagem
de som e arremesso

teu pulso
dobra o tempo

planície aquecida
em prata

pontos
si bi li nos

piano
e dedos

carta de estrelas
aproximações

branco e preto
em flocos

as naturais inquietações
da água.


SÃO PAULO, TEU NOME


Urbinácia máxima imperfeita
lençol de eus e meus em multidão
plantada em hastes, a planalticeia:
cidade inventada a cada pessoa.

Teus homens, mulheres e moribundos
vestem a roupa clara das manhãs
à noite desapertam os calçados da tarde
ora com nuvens, ora sem elas.

Levam às ruas o coração fechado
enquanto os olhares usurpam cores
das feias esquinas à quimera das vitrines
atados estamos ao preço das coisas.

E a matéria vivida coexiste calada
nos cômodos das mesmas casas
soma de tantos gestos e sentenças
manchas úmidas nas paredes gastas.

Insones atravessam a tua madrugada
acionam os remos largos da memória
e no amanhecer fecham os olhos cansados
indiferentes à altivez dos arranha-céus.

Na praça do bairro aparecem as primeiras
crianças – as que se interessam pela terra
acreditam na sombra das árvores
e acolhem faceiras a luz deste dia.

Aos poucos – avenidas, viadutos, prédios
despertam os músculos, os ossos e o rosto.
Novamente o corpo se levanta por inteiro
novelo de artérias sem fim nem começo.

Teu nome, São Paulo, induz ao engano,
tão pouco de ti lembra santidade.


Do livro Poeira (Editora 34, 2001), Prêmio APCA:

ANTIGAMENTE

Nas guerras de antigamente
os rios seguiam as batalhas
com o seu bordão triste.
Soldados feridos e curvados
vinham morrer na quietude 
das margens acolhedoras.
O correr das águas acompanhava
o derradeiro baque. Havia
o encontro heróico do sangue
com o nascer da lua no horizonte.
Cada guerreiro valia por um mito
sugerido nas linhas do céu.
O embalar do rio lhe servia de manto
(ah, os ossos entregues ao chão)
nas guerras de antigamente.


ESTUDO

O peixe na mesa pede
ser sugado pelo entendimento.
Face dobrada ao meio
dentes obedientes
olho nulo.

Ainda a carne sustenta
a curva maleável 
da forma única.
A umidade que resta
exsuda, tarefa involuntária.

Só as barbatanas 
insinuam sinal de menos.

SENTIMENTO PORTUGUÊS

Atado ao crepúsculo deste vagamundo
vejo mãos líquidas bater na praia inteira.

Escrevem brancas palavras de um sal agudo
e triste. Dói olhar o mar de uma cadeira.

Os lábios das canoas tremulam heurísticos
em contraste a navios castos sonolentos. 

Só mesmo a corcunda de Adamastor persiste
caída ao longe: sem esqueleto por dentro
nem a mover-lhe Deus — que acaso não existe
mas aparece posto neste rosto imenso.


DISPERSONA

Tantos que fui
ficaram poucos.

Uns 
nunca tiveram semblante
dissiparam-se nas roupas
— igual a zero..
Outros 
devastaram colunas à cidade
(santa ironia) 
enfrentadas por espadas de saliva.

Muitos eram clowns
noturnas aparições da face praticável...
Alguns restam fixados 
em datas:

corpo e nome 
aluguel 
de meu alguém.

Perdi-me 
diverso de mim.
Tantos
(celebrados)
tão pouco. 
Que nem perceber sei
este agora 

eu

de mim (de quem?)
fixado contra o rosto.


Do livro 25 Azulejos (Iluminuras, 1994):


NADADOR

 

No semicírculo de ar
a mão clareia
       asa extenuada
projeta-se ao fim.
Músculos tocam o arco do dia
sugam a derradeira força
de penetrar no meio
       escuro
dentro da água
       côncavo da noite:
o círculo puro.

SOLISTAS

Nascem os poemas nas horas turvas
ferocidade raiada em ondas
os dentes escarlates da tarde
       a solidão.
Ferem dissonantes o tráfego
       in
visibilidade ao redor
fogo salgado nas águas rápidas
       da cidade.
Morrem os poetas nas esquinas
flautistas breves da impossibilidade.

SÁ-CARNEIRO

Febre de decassílabos em queda...
       Nervos versos
estiram-me o corpo além
       da carne exata.
Cavalo enaltecido em rodopios
       sou vício de entranhas
verrumante aspereza do desejo.
Ah, morrer... como me fascinas...
       Por teus carrosséis de luz
sou dois: outro a ser em mim
       a dor de não ser eu.

DESASSOSSEGO

Os livros dos poetas formam nuvens
       geométricos
vapores enfileirados na estante:
       máquinas verticais.
Desertos perfilam-se na parede
ouço batuque de tijolos renascidos
       vogais transluzem.
(Abri-vos então poemas alveolados!
Libertai o olho ácido na tarde!
       Retirai as peles ao céu cinzento!
       Por último fazei cócegas nas árvores.)

AZULEJISTA

Superfície descarnada para o sono
       perde pedaço a pedaço
       pelas mãos do azulejista.
A parede crua desaparece lenta
       submetida ao capricho
de uma pele de esmalte e infinito.
       E a claridade
antes repousando em poros
       sobre que rebrilhos fluirá?
Ausente. Ele maneja massa e quadrados.
       Constrói o azul.
 

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